CORAÇÃO ENSINÁVEL, ATITUDES TRANSFORMADAS

14/03/2014 10:57

Samuel Alves Silva, 03/2014

 

Algumas dicotomias deveriam nos parecer estranhas, mas somos preparados culturalmente para nem as perceber. É o que ocorre quanto alguém fala que crê em Deus, mas claramente vive como se Deus sequer existisse. Ora, que tipo de fé é esta que admite apenas o conceito, sem o impacto que este conceito deveria causar na vida do que a declara. Uma fé meramente intelectual é vazia de significado. Não passa, neste caso, de um ateísmo prático.

 

Aceitamos bem a noção de que alguém deter o conhecimento apenas teórico, enquanto outro detenha o conhecimento prático e em alguns casos chegamos a ponderar sobre qual deles é mais importante. Isto tem uma origem na intelectualidade grega.

 

A cultura e filosofia gregas, berço do pensamento ocidental moderno, admitia dicotomias como estas, nos dificultando a correta compreensão do significado do conhecimento, nos termos tratados pela Bíblia, que é expressa a partir da cultura hebraica.

 

Quando falamos de conhecer a Deus, ou o Filho de Deus, como tratado em Ef 4.13, apesar de termos ali uma palavra grega, (epignosis, epi = completo; gnosis = conhecimento), não é com o conceito grego de conhecimento, muito mais intelectual, mas com o conceito hebreu de conhecimento, que se refere a um conhecimento integral e experimental, que não exclui o conhecimento intelectual, mas não se limita a ele.

 

Em Ef 4.13, por exemplo, o significado de “conhecer” implica em experimentar, se relacionar com o Filho de Deus em sua plenitude. É chegar a uma identificação e unidade total com o Filho de Deus.

 

Por isto não devemos estranhar o chavão presente em algumas situações, em que alguém fala de “conhecer no sentido bíblico”, onde Adão conheceu Eva, tendo intimidades com ela (Gn 4.1). O mesmo foi dito por Maria, quando admitiu não ter ainda conhecido a nenhum homem (Lc 1.34).  

 

Portanto, em uma perspectiva bíblica, e sendo mais acurado, da perspectiva de Deus, o conhecimento envolve experiência, relacionamento, intimidade. Assim um coração que se deixe ensinar não é somente tomado de uma simples avidez pelo aspecto intelectual do conhecimento, como admitido pelos gregos, mas busca um envolvimento que marca as atitudes, o comportamento, as experiências, a vida em seu sentido pleno.

 

Nesta perspectiva é mais fácil compreendermos a afirmativa de Cristo, em sua oração, quando diz:

 

E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste (Jo 17.3).

 

Mas por que o conhecimento é de tão grande importância na perspectiva de Deus?

 

I. O PROPÓSITO DE DEUS É A FORMAR PESSOAS PERFEITAS.

 

Na criação o homem foi feito a imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26). Não foi um homem sem capacidade intelectual, que partia de uma condição de incapaz, mas em condições que com certeza superavam a nossa capacidade ainda hoje. Podia dominar sobre todas as criaturas vivas.  Deu nome a todos os animais domésticos, aves e animais do campo (Gn 2.19,20), e podia até mesmo se comunicar com os animais (Gn 3.1,2). E claro, este homem, antes do pecado, também tinha uma perfeita intimidade com Deus (Gn 3.8).

 

E o que foi a queda de nossos primeiros pais, se não um divórcio do verdadeiro conhecimento e de sua finalidade? Quando o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (1 Jo 2.16) entram em nossos corações, temos o nosso entendimento cegado pelo deus deste século (2 Co 4.4), nos fazendo incrédulos.

 

A partir daí, todo o texto bíblico nos dá notícia do esforço de Deus pelo resgate do homem. Este esforço tem uma marca principal: o retorno do homem ao conhecimento de Deus. Isto implica tanto em que detenham o saber sobre a justiça e ética do Criador, como em relação a sua prática.

 

Deus nunca deixou de se manifestar ao homem, trazendo sua orientação. Gênesis registra um Deus que fala com Caim (Gn 4.6,7 – uma pregação sem convertidos imediatos, diga-se de passagem), com Noé (Gn 6.13), com Abrão (Gn 12.1), e esta prática é contínua durante toda a existência da humanidade.

 

Levantou homens e mulheres, para dar a possibilidade, aos sábios, de adoção de seu propósito de retorno ao homem daquela condição para o qual foi criado. Por isto disse a Abrão, um representante de toda a humanidade naquele seu propósito: “anda em minha presença, e sê perfeito” (Gn 17.1).

 

Quando retira o povo de Israel do Egito (bem como a Igreja do mundo), os traz ao pé do Sinai, e por quase dois anos os ensina, pois um bando de escravos não sabia ser uma nação, e muito menos um Povo de Deus. A lei moral, conhecida como “Os 10 Mandamentos” (Ex 20, Dt 5), era, e continua sendo, a expressão da ética do próprio Deus para seu povo, devendo ser assimilada com o coração, como esclareceu Cristo em seu ensino (Mt 5.21-28).

 

No novo testamento o propósito de Deus se faz fortemente presente, na revelação do Deus-homem, Cristo, que se apresentou como modelo a ser seguido (1 Co 11.1). E além de ser modelo, providenciou toda ajuda que seus fieis necessitariam:

 

E ele deu uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros como evangelistas, e outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo (Ef 4.11-12).

 

Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra (2 Tm 3.16-17).

 

II. DEVEMOS COOPERAR COM OS PROPÓSITOS DE DEUS.

 

Deus tem a perfeição por propósito para seus filhos. Mesmo diante da “impossibilidade” que muitos podem argumentar, a pergunta que cada um de nós deve fazer é: até que ponto temos realmente seguido os princípios divinos, a fim de atender aos propósitos de Deus?

 

Nosso grande impedimento é que requisitos básicos para um cristão estão sendo rejeitados cotidianamente em nossas vidas, a começar pelo “negar-se a si mesmo”.

 

Claramente, a porta de entrada para a vida com Deus é:

 

Mt 16.24 Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me;

Mc 8.34 E chamando a si a multidão com os discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me.

Lc 9.23 Em seguida dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e siga-me.

 

Não há como a perfeição de Deus tomar nossas vidas, se não abrirmos mão de nós mesmos. Este ensino grassa o Novo Testamento, mas para ter eficácia em nós precisa ocupar nosso coração e mente.

 

Um cristianismo nominal pode enganar aos homens, satisfazer ao ego, atender aos critérios de líderes atentos muito mais aos auditórios cheios e grandes entradas financeiras, mas é impossível condizer com os preceitos bíblicos que exaltam a crucificação do velho homem, a novidade de vida, a mente de Cristo, o pensar nas coisas que são lá do alto, a vida frutuosa no Senhor, o fruto do Espírito, enfim, uma vida dirigida pelo Espírito Santo.  O desafio: ser um crente verdadeiro, cristocêntrico, que adore em espírito e em verdade.

 

Para isto o crente precisa conscientemente, em atitude de fé, negar-se a si mesmo, e assumir seu compromisso de mudança. A Bíblia é incisiva nesta questão:

 

a despojar-vos, quanto ao procedimento anterior, do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano (Ef 4.22).

 

A noite é passada, e o dia é chegado; dispamo-nos, pois, das obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz (Rm 13.12).

 

não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do homem velho com os seus feitos (Cl 3.9).

 

Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, (Hb 12.1).

 

Pelo que, despojando-vos de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal, recebei com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas almas. (Tg 1.21).

 

  Deixando, pois, toda a malícia, todo o engano, e fingimentos, e invejas, e toda a maledicência, (1Pe 2.1).

 

Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mt 6.33).

 

Com tantos aspectos de nossa responsabilidade, ou seja, não sendo obras que o Espirito Santo fará sozinho em nossas vidas, mas que com certeza devemos participar, com a responsabilidade de ser perfeitos, santos, e tudo mais, como fazer, diante de nossa tendência a ceder diante da pior de todas as maldições hereditárias, nosso gosto pelo pecado, pela rebeldia?

 

Só uma alternativa pode nos ajudar: o ser dirigido pelo Espírito Santo. Paulo nos ensina sobre isto afirmando que

 

o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser; e os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele (Rm 8.3-9).  

 

E fecha questão afirmando que todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus (Rm 8.14). Eis o caminho que nos possibilita cumprir com um desafio muito superior ao mero cumprimento da lei. É Deus buscando agir em nossas vidas de dentro para fora. Para isto ele precisa entrar em nossas vidas (Ap 3.20) e claro, ficar no controle de tudo.

 

III. O CONHECIMENTO MERAMENTE INTELECTUAL NOS CONDUZ AO ENGANO

 

Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando a vocês mesmos (Tg 1.22).

 

O mundo e a igreja visível estão abarrotados de pessoas que conhecem muito sobre Deus, mas não conhecem a Deus. E há um forte desafio a que eu e você não estejamos no grupo que apenas conhece sobre Deus. Não basta conhecer sobre Deus. É preciso vivencia-lo em nossa vida.

 

Jesus se ocupou desta questão, questionando:

 

E por que me chamais: Senhor, Senhor, e não fazeis o que eu vos digo? Todo aquele que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante: É semelhante ao homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala, e pôs os alicerces sobre a rocha; e vindo a enchente, bateu com ímpeto a torrente naquela casa, e não a pôde abalar, porque tinha sido bem edificada. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre terra, sem alicerces, na qual bateu com ímpeto a torrente, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa (Lc 6.46-49).

 

Somos fortemente advertidos a cuidar para não andarmos na vaidade de nossa mente. Paulo diz e testifica no Senhor, para que não mais andeis como andam os gentios, na verdade da sua mente, entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os quais, tendo-se tornado insensíveis, entregaram-se à lascívia para cometerem com avidez toda sorte de impureza (Ef 4.17-19) e ao final nos diz: Mas vós não aprendestes assim a Cristo (Ef 4.20).

 

Faz toda a diferença o aprender sobre Cristo, do aprender a Cristo. Muito mais que aprender sobre Cristo, que ficaria em um nível informativo, intelectual, descompromissado, aprender a Cristo é o desafio de ter o verdadeiro conhecimento de Cristo em nosso modo de viver, nossa prática diária. É edificar sua casa com alicerces sobre a rocha.

 

Como dito por Paulo, o problema é que a “vaidade de nossa mente” é um forte impeditivo a que conheçamos a Deus.

 

Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.  Mas o que é espiritual discerne bem tudo, enquanto ele por ninguém é discernido (1 Co 2.14-15).

 

A partir da vaidade de nossas mentes o resultado natural é o que vige neste tempo pós-moderno: uma aceitação a que cada um tenha a sua verdade. Muitos admitem que cada um pode ter a sua própria interpretação das Escrituras, abrindo mão do fato de que o seu legítimo autor está insistindo em nos conduzir à correta compreensão de sua vontade.

 

Na vaidade de suas mentes muitos crentes não mais aceitam ser pastoreados, nem por pastores terrenos, nem pelas Escrituras e claro, nesta sequencia, não aceitam sequer a Deus, que usa homens e mulheres para nos edificar através das Escrituras.

 

Nesta sequencia precisamos vigiar nossas vidas, pois já é chegado o tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo grande desejo de ouvir coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos, e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas se voltarão às fábulas (2 Tm 4.3,4). Não é este o motivo pelo qual muitos deixam aquelas igrejas mais acirradas nas práticas bíblicas, optando pelas que melhor atendem a suas paixões terrenas?

 

E claro, a consequência da operação da vaidade de suas mentes, inclusive sobre aqueles que tendo acesso a verdade, se mantiveram em “suas próprias verdades” será a operação do iníquo alcançando suas vidas, com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para serem salvos. E por isso Deus lhes envia a operação do erro, para que creiam na mentira; para que sejam julgados todos os que não creram na verdade, antes tiveram prazer na injustiça (2 Ts 2.10-12).

 

Isto explica porque alguns obtém aparentes sucessos em suas campanhas e propósitos contrários ao ensino bíblico, mesmo que feitos em alguma igreja, sob a benção de algum pastor descompromissado com a vontade de Deus, todos voltados para o entendimento de que “benção” se resume a coisas e conquistas terrenas, afrontando literalmente a recomendação de Cristo em Mt 6.33. É a operação do erro, enviada por Deus, para que creiam na mentira todos os que não creram na verdade.

 

IV. HÁ BENEFÍCIOS SEGUROS NO CONHECER A DEUS.

 

Não posso pensar em referências melhores para falar das riquezas de nossa experiência com Deus que aqueles homens que foram reconhecidos como iletrados e indoutos (At 4.13), mas haviam feito um curso de mais de três anos, intensivo, aos pés do mestre dos mestres. Tendo conhecido a Deus, eles revelavam agora a sabedoria dos céus, fazendo todos se admirarem e reconhecerem que eles conheciam a Cristo.

 

Pedro nos ensinou como multiplicar a graça e a paz em nossas vidas: graça e paz vos sejam multiplicadas no pleno conhecimento de Deus e de Jesus nosso Senhor (2 Pe 1.2).  

 

Pedro vincula todo nosso benefício espiritual ao pleno conhecimento de Deus e de Jesus Cristo. Ele fala aqui deste conhecimento no sentido hebraico do termo, que implica em apreensão, transformação, experiência.

 

O Espírito Santo, por intermédio de Pedro nos ensina que:

 

Visto como o seu divino poder nos tem dado tudo o que diz respeito à vida e à piedade, pelo pleno conhecimento daquele que nos chamou por sua própria glória e virtude; pelas quais ele nos tem dado as suas preciosas e grandíssimas promessas, para que por elas vos torneis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.

E por isso mesmo vós, empregando toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência o domínio próprio, e ao domínio próprio a perseverança, e à perseverança a piedade, e à piedade a fraternidade, e à fraternidade o amor.

Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, elas não vos deixarão ociosos nem infrutíferos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, vendo somente o que está perto, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados (2 Pe 1.3-9).

 

João nos adverte que:

 

Nisto sabemos que o conhecemos; se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade; mas qualquer que guarda a sua palavra, nele realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos (1 Jo 2.3-5).

 

Estes leigos tinham formação superior em relacionamento com Deus. Devemos nos curvar à sabedoria que nos é passada por suas instrumentalidades.

 

Conclusão

 

Há muito que ser considerado neste tema. Mas podemos sintetizar dizendo que o caminho é conhecer a Deus, mais que conhecer sobre Deus. Portanto, irmãos, procurai mais diligentemente fazer firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis (2Pe 1:10).

 

No lembremos sempre que o que despreza a palavra traz sobre si a destruição; mas o que teme o mandamento será galardoado (Pv 13.13). Portanto ouve o conselho, e recebe a correção, para que sejas sábio nos teus últimos dias (Pv 19.20).Samuel Alves Silva, 03/2014

 

Algumas dicotomias deveriam nos parecer estranhas, mas somos preparados culturalmente para nem as perceber. É o que ocorre quanto alguém fala que crê em Deus, mas claramente vive como se Deus sequer existisse. Ora, que tipo de fé é esta que admite apenas o conceito, sem o impacto que este conceito deveria causar na vida do que a declara. Uma fé meramente intelectual é vazia de significado. Não passa, neste caso, de um ateísmo prático.

 

Aceitamos bem a noção de que alguém deter o conhecimento apenas teórico, enquanto outro detenha o conhecimento prático e em alguns casos chegamos a ponderar sobre qual deles é mais importante. Isto tem uma origem na intelectualidade grega.

 

A cultura e filosofia gregas, berço do pensamento ocidental moderno, admitia dicotomias como estas, nos dificultando a correta compreensão do significado do conhecimento, nos termos tratados pela Bíblia, que é expressa a partir da cultura hebraica.

 

Quando falamos de conhecer a Deus, ou o Filho de Deus, como tratado em Ef 4.13, apesar de termos ali uma palavra grega, (epignosis, epi = completo; gnosis = conhecimento), não é com o conceito grego de conhecimento, muito mais intelectual, mas com o conceito hebreu de conhecimento, que se refere a um conhecimento integral e experimental, que não exclui o conhecimento intelectual, mas não se limita a ele.

 

Em Ef 4.13, por exemplo, o significado de “conhecer” implica em experimentar, se relacionar com o Filho de Deus em sua plenitude. É chegar a uma identificação e unidade total com o Filho de Deus.

 

Por isto não devemos estranhar o chavão presente em algumas situações, em que alguém fala de “conhecer no sentido bíblico”, onde Adão conheceu Eva, tendo intimidades com ela (Gn 4.1). O mesmo foi dito por Maria, quando admitiu não ter ainda conhecido a nenhum homem (Lc 1.34).  

 

Portanto, em uma perspectiva bíblica, e sendo mais acurado, da perspectiva de Deus, o conhecimento envolve experiência, relacionamento, intimidade. Assim um coração que se deixe ensinar não é somente tomado de uma simples avidez pelo aspecto intelectual do conhecimento, como admitido pelos gregos, mas busca um envolvimento que marca as atitudes, o comportamento, as experiências, a vida em seu sentido pleno.

 

Nesta perspectiva é mais fácil compreendermos a afirmativa de Cristo, em sua oração, quando diz:

 

E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, como o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, aquele que tu enviaste (Jo 17.3).

 

Mas por que o conhecimento é de tão grande importância na perspectiva de Deus?

 

I. O PROPÓSITO DE DEUS É A FORMAR PESSOAS PERFEITAS.

 

Na criação o homem foi feito a imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26). Não foi um homem sem capacidade intelectual, que partia de uma condição de incapaz, mas em condições que com certeza superavam a nossa capacidade ainda hoje. Podia dominar sobre todas as criaturas vivas.  Deu nome a todos os animais domésticos, aves e animais do campo (Gn 2.19,20), e podia até mesmo se comunicar com os animais (Gn 3.1,2). E claro, este homem, antes do pecado, também tinha uma perfeita intimidade com Deus (Gn 3.8).

 

E o que foi a queda de nossos primeiros pais, se não um divórcio do verdadeiro conhecimento e de sua finalidade? Quando o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (1 Jo 2.16) entram em nossos corações, temos o nosso entendimento cegado pelo deus deste século (2 Co 4.4), nos fazendo incrédulos.

 

A partir daí, todo o texto bíblico nos dá notícia do esforço de Deus pelo resgate do homem. Este esforço tem uma marca principal: o retorno do homem ao conhecimento de Deus. Isto implica tanto em que detenham o saber sobre a justiça e ética do Criador, como em relação a sua prática.

 

Deus nunca deixou de se manifestar ao homem, trazendo sua orientação. Gênesis registra um Deus que fala com Caim (Gn 4.6,7 – uma pregação sem convertidos imediatos, diga-se de passagem), com Noé (Gn 6.13), com Abrão (Gn 12.1), e esta prática é contínua durante toda a existência da humanidade.

 

Levantou homens e mulheres, para dar a possibilidade, aos sábios, de adoção de seu propósito de retorno ao homem daquela condição para o qual foi criado. Por isto disse a Abrão, um representante de toda a humanidade naquele seu propósito: “anda em minha presença, e sê perfeito” (Gn 17.1).

 

Quando retira o povo de Israel do Egito (bem como a Igreja do mundo), os traz ao pé do Sinai, e por quase dois anos os ensina, pois um bando de escravos não sabia ser uma nação, e muito menos um Povo de Deus. A lei moral, conhecida como “Os 10 Mandamentos” (Ex 20, Dt 5), era, e continua sendo, a expressão da ética do próprio Deus para seu povo, devendo ser assimilada com o coração, como esclareceu Cristo em seu ensino (Mt 5.21-28).

 

No novo testamento o propósito de Deus se faz fortemente presente, na revelação do Deus-homem, Cristo, que se apresentou como modelo a ser seguido (1 Co 11.1). E além de ser modelo, providenciou toda ajuda que seus fieis necessitariam:

 

E ele deu uns como apóstolos, e outros como profetas, e outros como evangelistas, e outros como pastores e mestres, tendo em vista o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo (Ef 4.11-12).

 

Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra (2 Tm 3.16-17).

 

II. DEVEMOS COOPERAR COM OS PROPÓSITOS DE DEUS.

 

Deus tem a perfeição por propósito para seus filhos. Mesmo diante da “impossibilidade” que muitos podem argumentar, a pergunta que cada um de nós deve fazer é: até que ponto temos realmente seguido os princípios divinos, a fim de atender aos propósitos de Deus?

 

Nosso grande impedimento é que requisitos básicos para um cristão estão sendo rejeitados cotidianamente em nossas vidas, a começar pelo “negar-se a si mesmo”.

 

Claramente, a porta de entrada para a vida com Deus é:

 

Mt 16.24 Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me;

Mc 8.34 E chamando a si a multidão com os discípulos, disse-lhes: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me.

Lc 9.23 Em seguida dizia a todos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz, e siga-me.

 

Não há como a perfeição de Deus tomar nossas vidas, se não abrirmos mão de nós mesmos. Este ensino grassa o Novo Testamento, mas para ter eficácia em nós precisa ocupar nosso coração e mente.

 

Um cristianismo nominal pode enganar aos homens, satisfazer ao ego, atender aos critérios de líderes atentos muito mais aos auditórios cheios e grandes entradas financeiras, mas é impossível condizer com os preceitos bíblicos que exaltam a crucificação do velho homem, a novidade de vida, a mente de Cristo, o pensar nas coisas que são lá do alto, a vida frutuosa no Senhor, o fruto do Espírito, enfim, uma vida dirigida pelo Espírito Santo.  O desafio: ser um crente verdadeiro, cristocêntrico, que adore em espírito e em verdade.

 

Para isto o crente precisa conscientemente, em atitude de fé, negar-se a si mesmo, e assumir seu compromisso de mudança. A Bíblia é incisiva nesta questão:

 

a despojar-vos, quanto ao procedimento anterior, do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano (Ef 4.22).

 

A noite é passada, e o dia é chegado; dispamo-nos, pois, das obras das trevas, e vistamo-nos das armas da luz (Rm 13.12).

 

não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do homem velho com os seus feitos (Cl 3.9).

 

Portanto, nós também, pois estamos rodeados de tão grande nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço, e o pecado que tão de perto nos rodeia, e corramos com perseverança a carreira que nos está proposta, (Hb 12.1).

 

Pelo que, despojando-vos de toda sorte de imundícia e de todo vestígio do mal, recebei com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar as vossas almas. (Tg 1.21).

 

  Deixando, pois, toda a malícia, todo o engano, e fingimentos, e invejas, e toda a maledicência, (1Pe 2.1).

 

Mas buscai primeiro o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mt 6.33).

 

Com tantos aspectos de nossa responsabilidade, ou seja, não sendo obras que o Espirito Santo fará sozinho em nossas vidas, mas que com certeza devemos participar, com a responsabilidade de ser perfeitos, santos, e tudo mais, como fazer, diante de nossa tendência a ceder diante da pior de todas as maldições hereditárias, nosso gosto pelo pecado, pela rebeldia?

 

Só uma alternativa pode nos ajudar: o ser dirigido pelo Espírito Santo. Paulo nos ensina sobre isto afirmando que

 

o que era impossível à lei, visto que se achava fraca pela carne, Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança da carne do pecado, e por causa do pecado, na carne condenou o pecado, para que a justa exigência da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Pois os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem em verdade o pode ser; e os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele (Rm 8.3-9).  

 

E fecha questão afirmando que todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus (Rm 8.14). Eis o caminho que nos possibilita cumprir com um desafio muito superior ao mero cumprimento da lei. É Deus buscando agir em nossas vidas de dentro para fora. Para isto ele precisa entrar em nossas vidas (Ap 3.20) e claro, ficar no controle de tudo.

 

III. O CONHECIMENTO MERAMENTE INTELECTUAL NOS CONDUZ AO ENGANO

 

Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando a vocês mesmos (Tg 1.22).

 

O mundo e a igreja visível estão abarrotados de pessoas que conhecem muito sobre Deus, mas não conhecem a Deus. E há um forte desafio a que eu e você não estejamos no grupo que apenas conhece sobre Deus. Não basta conhecer sobre Deus. É preciso vivencia-lo em nossa vida.

 

Jesus se ocupou desta questão, questionando:

 

E por que me chamais: Senhor, Senhor, e não fazeis o que eu vos digo? Todo aquele que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante: É semelhante ao homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala, e pôs os alicerces sobre a rocha; e vindo a enchente, bateu com ímpeto a torrente naquela casa, e não a pôde abalar, porque tinha sido bem edificada. Mas o que ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre terra, sem alicerces, na qual bateu com ímpeto a torrente, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa (Lc 6.46-49).

 

Somos fortemente advertidos a cuidar para não andarmos na vaidade de nossa mente. Paulo diz e testifica no Senhor, para que não mais andeis como andam os gentios, na verdade da sua mente, entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu coração; os quais, tendo-se tornado insensíveis, entregaram-se à lascívia para cometerem com avidez toda sorte de impureza (Ef 4.17-19) e ao final nos diz: Mas vós não aprendestes assim a Cristo (Ef 4.20).

 

Faz toda a diferença o aprender sobre Cristo, do aprender a Cristo. Muito mais que aprender sobre Cristo, que ficaria em um nível informativo, intelectual, descompromissado, aprender a Cristo é o desafio de ter o verdadeiro conhecimento de Cristo em nosso modo de viver, nossa prática diária. É edificar sua casa com alicerces sobre a rocha.

 

Como dito por Paulo, o problema é que a “vaidade de nossa mente” é um forte impeditivo a que conheçamos a Deus.

 

Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque para ele são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.  Mas o que é espiritual discerne bem tudo, enquanto ele por ninguém é discernido (1 Co 2.14-15).

 

A partir da vaidade de nossas mentes o resultado natural é o que vige neste tempo pós-moderno: uma aceitação a que cada um tenha a sua verdade. Muitos admitem que cada um pode ter a sua própria interpretação das Escrituras, abrindo mão do fato de que o seu legítimo autor está insistindo em nos conduzir à correta compreensão de sua vontade.

 

Na vaidade de suas mentes muitos crentes não mais aceitam ser pastoreados, nem por pastores terrenos, nem pelas Escrituras e claro, nesta sequencia, não aceitam sequer a Deus, que usa homens e mulheres para nos edificar através das Escrituras.

 

Nesta sequencia precisamos vigiar nossas vidas, pois já é chegado o tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo grande desejo de ouvir coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos, e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas se voltarão às fábulas (2 Tm 4.3,4). Não é este o motivo pelo qual muitos deixam aquelas igrejas mais acirradas nas práticas bíblicas, optando pelas que melhor atendem a suas paixões terrenas?

 

E claro, a consequência da operação da vaidade de suas mentes, inclusive sobre aqueles que tendo acesso a verdade, se mantiveram em “suas próprias verdades” será a operação do iníquo alcançando suas vidas, com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para serem salvos. E por isso Deus lhes envia a operação do erro, para que creiam na mentira; para que sejam julgados todos os que não creram na verdade, antes tiveram prazer na injustiça (2 Ts 2.10-12).

 

Isto explica porque alguns obtém aparentes sucessos em suas campanhas e propósitos contrários ao ensino bíblico, mesmo que feitos em alguma igreja, sob a benção de algum pastor descompromissado com a vontade de Deus, todos voltados para o entendimento de que “benção” se resume a coisas e conquistas terrenas, afrontando literalmente a recomendação de Cristo em Mt 6.33. É a operação do erro, enviada por Deus, para que creiam na mentira todos os que não creram na verdade.

 

IV. HÁ BENEFÍCIOS SEGUROS NO CONHECER A DEUS.

 

Não posso pensar em referências melhores para falar das riquezas de nossa experiência com Deus que aqueles homens que foram reconhecidos como iletrados e indoutos (At 4.13), mas haviam feito um curso de mais de três anos, intensivo, aos pés do mestre dos mestres. Tendo conhecido a Deus, eles revelavam agora a sabedoria dos céus, fazendo todos se admirarem e reconhecerem que eles conheciam a Cristo.

 

Pedro nos ensinou como multiplicar a graça e a paz em nossas vidas: graça e paz vos sejam multiplicadas no pleno conhecimento de Deus e de Jesus nosso Senhor (2 Pe 1.2).  

 

Pedro vincula todo nosso benefício espiritual ao pleno conhecimento de Deus e de Jesus Cristo. Ele fala aqui deste conhecimento no sentido hebraico do termo, que implica em apreensão, transformação, experiência.

 

O Espírito Santo, por intermédio de Pedro nos ensina que:

 

Visto como o seu divino poder nos tem dado tudo o que diz respeito à vida e à piedade, pelo pleno conhecimento daquele que nos chamou por sua própria glória e virtude; pelas quais ele nos tem dado as suas preciosas e grandíssimas promessas, para que por elas vos torneis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo.

E por isso mesmo vós, empregando toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, e à ciência o domínio próprio, e ao domínio próprio a perseverança, e à perseverança a piedade, e à piedade a fraternidade, e à fraternidade o amor.

Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas, elas não vos deixarão ociosos nem infrutíferos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não há estas coisas é cego, vendo somente o que está perto, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos pecados (2 Pe 1.3-9).

 

João nos adverte que:

 

Nisto sabemos que o conhecemos; se guardamos os seus mandamentos. Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso, e nele não está a verdade; mas qualquer que guarda a sua palavra, nele realmente se tem aperfeiçoado o amor de Deus. E nisto sabemos que estamos (1 Jo 2.3-5).

 

Estes leigos tinham formação superior em relacionamento com Deus. Devemos nos curvar à sabedoria que nos é passada por suas instrumentalidades.

 

Conclusão

 

Há muito que ser considerado neste tema. Mas podemos sintetizar dizendo que o caminho é conhecer a Deus, mais que conhecer sobre Deus. Portanto, irmãos, procurai mais diligentemente fazer firme a vossa vocação e eleição; porque, fazendo isto, nunca jamais tropeçareis (2Pe 1:10).

 

No lembremos sempre que o que despreza a palavra traz sobre si a destruição; mas o que teme o mandamento será galardoado (Pv 13.13). Portanto ouve o conselho, e recebe a correção, para que sejas sábio nos teus últimos dias (Pv 19.20).