Culto Judeu ou Culto Cristão?

12/03/2012 10:40

Cultuar a Deus é uma obrigação que, em nossa vida, deve traduzir-se em júbilo espiritual. É adoração ou homenagem reverente que se presta a Deus. “Quantas lágrimas verti, de profunda comoção, ao mavioso ressoar de teus hinos e cânticos em tua igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coração, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande bem-estar“. Estas palavras de Agostinho, o maior teólogo da cristandade ocidental, constrangem-nos a entrar, humilde e amorosamente, nos átrios do culto divino. Mas qual o verdadeiro significado do culto cristão?

O ensino do culto na Bíblia acompanha em simultaneidade a revelação progressiva de Deus, culminando com Jesus Cristo. Os primeiros cristãos foram judeus. No início continuaram a participar do culto no templo de Jerusalém, acrescentando uma refeição cristã especial, a ceia (At 2.46),  mas pouco a pouco os cristãos entenderam que o antigo sacerdócio não era mais necessário, visto que a morte de Jesus fora o sacrifício definitivo, oferecido pelos pecados uma vez por todas (Hb 9.11-14).  Assim, começaram a afastar-se do culto do templo, especialmente depois que surgiram conflitos entre judeus e cristãos. 

Eles entenderam que os discípulos de Cristo, incluindo nós, são chamados para viver uma Nova Aliança, construída desde os primórdios. A palavra "aliança", "diathéke", no grego, significa "pacto", "concerto", ou "testamento". É por meio de uma aliança que Deus declara a sua vontade soberana e estabelece a sua maneira graciosa de se relacionar conosco. Sem as alianças, não haveria relacionamento do homem com Deus.

A adoração no Antigo Testamento, na velha aliança, foi temporária, imperfeita e apenas uma sombra da adoração que seria estabelecida por Jesus, na Nova Aliança: Porque, se aquela primeira aliança tivesse sido sem defeito, de maneira alguma estaria sendo buscado lugar para uma segunda (Hb 8.7). O sistema sacrifical era "sombra" ou "parábola": É isto uma parábola para a época presente; e, segundo esta se oferece tanto dons como sacrifícios, embora estes, no tocante à consciência, sejam ineficazes para aperfeiçoar aquele que presta culto, os quais não passam de ordenanças da carne, baseadas somente em comidas, e bebidas, e diversas abluções, impostas até ao tempo oportuno de reforma (Hb 9.9-10).

Por isso a adoração cristã fundamenta-se na Nova Aliança: Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam, quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! (Hb 9.11-14).

Então, embora não  podemos nos esquecer da base deste Novo Pacto que é o Antigo Testamento, devemos considerar que Jesus fez alteração de muitas práticas, sendo a mais forte relacionada ao sacerdócio. Na Nova Aliança, o sacerdócio cristão não vem da linhagem de Levi, e sim, de Melquisedeque (Hb 7.11). Ou seja, as nossas características litúrgicas não devem proceder do culto levítico, afinal, servimos um Deus invisível, e importa que o adoremos em espírito e em verdade (Jo 4.23-24).

Adorar em espírito significa que a verdadeira adoração inaugurada por Jesus Cristo é interna e do coração. Não se prende mais a lugares sagrados, pois o crente é santuário de Deus (1Co 6.19-201Pe 2.5; ). É simples. Não se prende mais aos rituais da lei cerimonial (Hb 10.19-22). É no Espírito Santo (Fp 3.3), pois ninguém pode adorar sem a ajuda dEle (1Co 12.3).

 Além disso, a adoração instituída por Jesus deve ser em verdade. Ela deve ser de acordo com a Bíblia. Está limitada a aquilo que é autorizado pela Escritura. Deve ser sincera, sem falsidade, se contrapondo ao formalismo exterior (Mt 15.8-9), e racional: rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. (Rm 12.1). A expressão "culto racional" (grego = "logiken latreian") significa culto lógico e inteligível. É o culto que respeita o ser cultuado. Que está de acordo com a natureza e caráter de Deus, conforme as Escrituras revelam.

O culto cristão requer entendimento: Porque, se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente  (1Co 14.14-15). O Salmo 150 diz: "todo ser que respira louve ao Senhor." Os animais, as plantas e os homens respiram. Cada um, porém, é de uma espécie diferente. O homem, ser racional, deve louvar a Deus utilizando-se da sua mente.

Infelizmente alguns, nos dias atuais, ainda não compreenderam este novo sentido da adoração ensinado por Jesus. É crescente o número de cultos com rituais e liturgias saturadas de simbolismos e figuras judaicas. Há igrejas com o alarido de um shofar, em que há convocação à congregação para uma peregrinação em direção a tenda de Abraão, montada atrás do púlpito. Há casos com a utlização da Arca da Aliança, candelabros espalhados pelo templo, água do Jordão, óleo ungido de Israel, Rosa de Saron, sem falar naquelas onde os líderes vestem roupas sacerdotais, enaltecendo o ministério sacerdotal do Antigo Testamento.

Aí alguém pode perguntar: e dai? O que tem demais nisso? Muita coisa. Como é possível uma igreja que se diz cristã passar pela tenda de Abraão, pela arca da aliança, receber o óleo ungido de Israel, entre outras coisas? E onde fica significado da cruz e da Nova Aliança em sua liturgia?

É inegável o significado histórico da cultura judaica para o cristianismo, de modo que, não resta dúvida da importância hermenêutica que as figuras do Antigo Testamento carregam consigo para a interpretação da graça divina contida no Novo Testamento. Mas fazer do culto cristão um ato cerimonial com elementos judaicos é não discernir o significado e a liberdade contida em Cristo Jesus. O Novo Testamento não apresenta elementos ritualísticos no culto.  Atos 2.42 esclarece que o ensino da Palavra, a oração, a comunhão e a celebração da Santa Ceia eram as práticas do culto apostólico. Shofar, estrela de Davi, arca da aliança, pano de saco, teshuvá e outros apetrechos judaicos não faziam parte da liturgia cristã, ensinada no texto bíblico.

O perigo é inegável quando a centralidade da vida, das Escrituras e do culto, deixa de ser Jesus Cristo e passa a ser um outro elemento, ainda que tenha grande relevância ou significado religioso na Antiga Aliança. Quando os símbolos religiosos são colocados diante do significado da Cruz, tornam-se apenas sombras. Todos os rituais religiosos do Antigo Testamento quando confrontados com a liberdade cristã, passam a ser simplesmente apontamentos que existiram no passado e que indicavam a graça de Deus em Cristo Jesus.

Vemos isto no ensino de Jesus a samaritana. O lugar da adoração, na Nova Aliança, não seria nem em Jerusalém nem em Samaria. Neste novo pacto, dispensaria lugar específico, pois seria em espírito e em verdade (Jo 4.23-24).

O apóstolo Paulo enfrentou a força do ritualismo religioso, tendo inclusive que inúmeras vezes denunciá-lo e combatê-lo: É alguém chamado, estando circuncidado? fique circuncidado. É alguém chamado estando incircuncidado? não se circuncide. A circuncisão é nada e a incircuncisão nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de Deus. Cada um fique na vocação em que foi chamado (1Co 7.18-20).

O modo operante da graça divina simplificou o caminho em direção a Deus, fazendo com que os rituais e as performances religiosas perdessem o seu valor e significado diante da plenitude de satisfação do sacrifico de Cristo Jesus diante da justiça divina.

Mas como abandonar as performances humanas relacionadas ao rito? O que fazer com os diversos apetrechos litúrgicos que encantavam e ludibriavam a alma? Como substituir o complexo, ardoroso e extensivo sistema litúrgico da auto justificação humana pela simplicidade da liberdade em Cristo Jesus?

O abandono da religiosidade pagã sempre foi o desafio de toda alma humana propensa ao ritualismo, que procura evitar a qualquer custo os benéficos da graça divina. Um dos objetivos da graça de Deus em Cristo Jesus é promover uma varredura e libertação do paganismo, amuletos, e toda espécie de quinquilharia religiosa que objetivam substituir a glória de Deus manifestada em Cristo.

O que estão chamando de evangelho forte (principalmente pela teologia da prosperidade) tem gerado pessoas fracas e adoecidas espiritualmente, enquanto que, a máxima do evangelho permanece o mesmo – Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse. Rogamo-vos, pois, da parte de Cristo, que vos reconcilieis com Deu” (2Co 5.19,20).

Enfim, antes de adotar certos hábitos e costumes lembre-se da orientação de Paulo aos coríntios: Mas temo que, assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos entendimentos, e se apartem da simplicidade que há em Cristo (1Co 11.3). Estou convencido de que, quanto maior for a centralidade singela em Cristo Jesus, mais poderosa será a vida da Igreja.

 

Por Samuel Alves / Thiago Alberto